sexta-feira, 27 de maio de 2016
O ESPAÇO E O IMAGINARIO POÉTICO NA PINTURA DE SONIA MARA MELLO (Mauro Scaramuzza Filho, 2006)
O presente estudo visa estabelecer uma análise da
obra pictórica da artista plástica contemporânea Sônia Mara Mello, sob os
conceitos da fenomenologia de Gaston Bachelard.
Realizar uma leitura fenomenológica da pintura de Sônia Mara
Mello, significa valorizar eu referencial poético inspirador, através de suas
impressões trazidas dos diversos ambientes
e meios artísticos dos quais participou.
Reduzi-la ao âmbito da pintura, trata-se de mero recurso
didático, pois a artista é premiada também no Teatro (roteiro, direção e
atuação), possui extensa produção literária na poesia, na confecção de
estamparia, vestuário e artesanato.
Acima de tudo o que torna mais intrigante sua produção é a
busca de liberdade expressiva através da irreverencia das composições e das
combinações cromáticas.
A artista traz o universo imaginário do Circo, do Teatro e da
poesia para o bidimensional. Seus quadros passam a ser uma espécie de reflexo
de seu universo interior e de sua própria imagem; seu olhar e sua fisionomia
somam-se a figuração de elementos da
natureza.
Essencialmente, sua festa de cores e imagens inclui um
banquete de referencias claras a sua vivencia campesina, pois trata-se de uma
que oscilou entre a urbanidade e seus ambientes e a ruralidades e seus elementos vegetais e animais. O trecho
de um poema de Pablo Neruda, abaixo, expressa o imaginário da pintora sobre
banquetes e festas.
Deus,
dá-me a festa mágica na minha vida,
Dá-me
teus fogos para iluminar a terra,
Deixa
em meu coração tua lâmpada acendida
Para
que eu seja o óleo de tua luz suprema.
E
eu irei pelos campos na noite estrelada
Com
os braços abertos e a face desnuda,
Cantando
árias ingênuas com as mesmas palavras
Com
que na noite falam os campos e a lua.
Em
sua pintura, deparamo-nos com sua imagem facial expressando o fascínio pelas
máscaras e chapéus, pelos recursos da maquiagem e pela cena visual que encerra
aspectos da teatralidade – com traços da Commedia del Arte, rica em
personagens-tipo, como o pierrot e o jardineiro. Como se assistíssemos a uma
espécie de palco-tela, em que personagens secundários e fabulosos preenchessem
os espaços que envolvem a imagem da própria artista.
A
artista retrata a si mesma, recriando-se em diversas cenas, como em um vôo
imaginário. Sua imagem vê-se, comumente, envolvida por elementos da fauna e da
flora, acompanhada de um candelabro, do teclado de um piano, e às vezes, por um
clarim – referências diretas a música, ao gosto por festas e a ambientes
noturnos e pela natureza. Confirmando o conceito de Bachelard (in: Bachelard, G. O ar e os sonhos, 2001,
pág.29) a respeito de uma alma formada na vida noturna, na vida inconsciente
espantosamente homogênea do sonho: Para algumas almas, ébrias de onirismo, os
dias são feitos para explicar as noites.
Sua
pintura em superfície bidimensional varia da tela em tecido ao Eucatex, mas
ultrapassando também os limites do que representa a Arte e a distingue do
artesanato. A artista imprime sua criatividade em diversos objetos de
artesanato (caixas, estojos, cerâmica e estamparia de tecidos), muitas vezes
convertidos em objeto-arte.
Durante
seu intervalo de criação artística, há uma extensa produção de artesanato,
colocando-se em dia com todo o tipo de inovação oferecida pelo setor. Explora
novas texturas e brilhos (metálicos, perolados e granulados), mantendo-se up-to-date com o mercado de produtos,
compatíveis com o material da tinta acrílica e das superfícies em que trabalha.
A artista busca também seu referencia poético através das viagens, do Cienama,
do entretenimento e da literatura, dos quais apreende novas impressões para
transportar à tela.
Torna-se
interessante observar, que voltando para a tela sua produção artística
apresenta inovações em termos de criatividade, que provem da adoção das
diversas técnicas aprendidas do artesanato. Destacam-se desta fase os trabalhos
em técnica mista expostos em Paris (2006).
Na
realidade , a pintora possui quase toda sua produção em técnica mista (mixed
media), considerando-se que em sua pintura há presença tanto da picturalidade
conferida pelo uso da tinta acrílica, sob as camadas translúcidas e também
opacas, quanto do grafismo executado com o pincel ou com o crayon. Muitas vezes
observamos o uso da colagem (inspirada nos papiers
collés) que pode vir expressa através de uma interferência poética escrita
ou mesmo de retalhos de peças de renda – usando do conceito estabelecido por
Picasso, trompe l’espirit, a respeito
da criação artística calcada na liberdade de espirito.
Em
termos gerais sua produção artística representa uma busca incessante por novos
recursos materiais que a tecnologia contemporânea oferece, como o usodas mais
variadas texturas e máscaras de aplicação ao bidimensional e sobretudo, através
do intercambio de novas técnicas utilizadas por consagrados artistas locais.
Visita ateliês de amigos como o de Malke Lima (especialista em objetos-arte:
baús, caixas e estojos coloridos e com motivos em relevo) e Regina Oliveira
(pintura mista sobre tela e papel).
A
CASA E O UNIVERSO
Com
relação ao espaço-ateliê, temos observado, desde 1990 que o foco múltiplo do
universo do teatro e suas luzes (incluindo presença da penumbra), compõe o
local da criação. Os ambientes variam do ateliê da rua Vicente Machado, em seu
pequeno apartamento cuja iluminação era precária, a ventilação quase nula e o
espaço como o de um elevador lotado, passando para uma espécie de garagem,
chamada de fábrica da Arte em um fundo
de escritório, ainda em frente ao seu apartamento da Vicente. Mas inclui também
seus espaços na Feirinha de domingo e na Praça em frente ao Museu Paranaense,
no espaço de Artesanato e até o sobrado do bairro Vista Alegre.
Em
seu atual estúdio, a casa, um grande sobrado de três andares, conta com uma
escadaria em duas espirais – com um aspecto de recuo visual e perspectiva de
câmera, e também com uma acústica favorável a grande distancia. Na cobertura – sempre uma fornalha, como
todos os seus estúdios – há uma disposição muito semelhante a uma coxia de
teatro; um apinhado de coisinhas, organizadas em disposição horizontal. Em um
canto extremo, como um ninho, há uma espécie de camarim. Como se não
encontrasse outra saída: um cantinho no sótão para pintar.
Possui
uma bancada de tintas semelhante a uma penteadeira, uma luminária, um
ventilador e dois ou três quadros imensos, como se fossem espelhos, onde sua
imagem mostra-se refletida e recebe as tintas, como uma maquiagem, as cores e
elementos da natureza, como se fossem saindo do peito da artista, para compor
sua roupagem. Mas agora, seu palco é Paris.
Sonia
Mara Mello tem participado de exposições por açguns países da europa, tais como
França e Espanha. Sua arte vem recebendo boa aceitação, por suas qualidades pictóricas
e cromáticas e seu talento criativo pleno de lirismo.
Na
fenomenologia de Bachelard, (in: Bachelard, G. A poética do espaço, 2000,
pág.55), encontramos a relação dos ambientes da casa e do quarto, dos poetas e
artistas, relacionada intimamente com sua produção artística. O acolhimento
proporcionado pelo lar e seus ambientes, nos quais o artista busca trazer o
universo externo para dentro de seu universo interno, torna-se uma demonstração
de sua generosidade, do gosto pelo colorido, pela natureza e pela multiplicidade
dos elementos que traduzem conforto físico – como almofadas, poltronas, chaise,
o ambiente acolhedor da minúscula piscina e do jardim de inverno e, até mesmo,
da churrasqueira que se abre para integra-se à sala de jantar unindo todos os
espaços em um só.
A
comunhão dinâmica entre o homem e a casa faz transcender espaços geométricos
(Bachelard, 2000, pág.62). É por isso que há uma queda d’água sobre a água, nos fundos do quintal, e uma
escadaria no meio das salas do térreo, em uma espécie de fusão da verticalidade
com os elementos que deitam sobre a terra. Como expressa o poeta Claude Hartman
(in: Bachelard, 2000. Pág.67) “Pela escada das árvores / Nós subimos”. Trata-se
de um espaço colorido e dinâmico, em que o universo vem habitar sua casa
(p.67).
A
imagem é inspiradora, conforme Bachelard (2000. Pág.68), “ (...) os espaços
armados nem sempre querem ficar fechados! Eles se desdobram. Parece que se
transportam facilmente para outros lugares, para outros tempos, para planos
diferentes de sonhos e lembranças.” Essa ideia é reforçada pelos ambientes do
sobrado citadino, mas também pela “casa da montanha” – seu cottage da fria
região metropolitana – e sua morada no litoral. Mas, acima de tudo, seus
ambientes são lembranças do sítio em que viveu no castelinho e de tantos outros
ambientes urbanos e campesinos, desta e de outras vidas – como costuma cogitar.
Alojado em toda a parte, mas sem estar preso a lugar
algum, essa é a divisa do sonhador de moradas. Na casa final, como em minha
casa real, o devaneio de habitar se vê logrado. È preciso sempre deixar aberto
um aberto um devaneio de outro lugar.
Bachelard,
Gaston. A poética do espaço, São Paulo, Martins Fontes, 2000. Pág.75
Na
realidade, Sônia Mara Mello, em todos os
lugares pelos quais passa, acaba por estampar as fauves de seu ateliê. Em termos gerais, seu estúdio passa a
refletir-se em todos os cômodos, de todos os lugares que habita.
Bachelard
(2000. Pág. 103) expressa a idéia de “ninho” ao ambiente íntimo de refúgio e
cita Vitor Hugo , que associa as imagens e o seres da função de habitar , reforçando que o
ambiente mais íntimo, é “para Quasímodo, a catedral, o ovo, o ninho, a casa, a
pátria, o universo. Quase poderia dizer que ele havia tomado a forma dela, como
o caracol toma a forma da concha”. Torna-se esta a forma como podemos comparar
o ambiente da criação de Sônia: no terceiro piso de sua morada, a rtista lembra
o personagem Quasímodo, em seu campanário – qual os pombos e gárgulas empoleirados
e agitados no cume da rugosa catedral.
Ninhos
brancos, teus pássaros vão florir.
Haveis
de voar, veredas de penas.
(Robert Ganzo, “Lóeuvre poétique”)
OBRAS
DE ARTE
Para
fins didáticos, passaremos a análise de apenas algumas obras da pintura de
Sônia Mara Mello. Sendo a artista plástica uma consagrada expoente da pintura
paranaense, não pretendemos determinar este estudo crítico como definitivo, mas
complementar as críticas recebidas anteriormente.
A
Figura 1 “Pierrot” (0,50 x 0,70 m, técnica mista, c.1993, acrílica sobre Eucatex),
coleção particular. Trata-se de uma composição circular cuja figura de um pierrot destaca-se como o elemento
principal. Observe-se a presença de grafismo, caracterizando traços
esquemáticos, executados em tinta branca, sugerindo uma cartola que coroa a
imagem de um palhaço, sob um colorido tasche,
de cores que se interpõe em blocos geométricos. Destaque especial para a
gola, composta em semicírculo, a qual encerra elementos da natureza que lembram
folhas verdes, borboletas amarelas e uma rosa vermelha (que figura como uma
espécie de nó). As massas de cor equilibram
o conjunto que traduz o momento de alívio, ou inspiração. Em que a
figura do palhaço mostra-se de olhos cerrados, em um momento que remete ao
universo onírico.
Segundo
as palavras da própria artista, “as minhas bonecas só dormem”. É como se o
universo fantasioso de um ator fosse traduzido em um momento de sonho: a imagem
dos olhos fechados. A imagem do sonho – como um voo – em que muitas vezes, os
personagens da tela da artista se encontram, neste quadro, faz-se representar –
além da imagem dos olhos fechados – pela gola de borboletas e pelos traços que
sugerem uma cartola branca – como um voo para o imaterial.
De
acordo com Bachelard (2001. Pág.19), a
imagem poética do voo engloba a a busca do homem em transpor obstáculos físicos
e seu voo para o etéreo. É quando o ser se desprende dos entraves terrenos e se
lança no cosmos, buscando a união com Deus, em uma fantasiosa viagem ao
infinito. Citando, em sequencia Cyrano de Bergerac (p. 37), no “Preface à l’historie comique dês états et
empires”: “Em minha mais bela idade, parecia-me, ao dormir, que tornando-me
leve, eu me elevava até as nuvens...”
MINHA ALMA é um carrossel vazio no
crepúsculo...
Pablo Neruda
A
Figura 02, “Fases da minha vida” (0,72 x 0,98 m. Pintura acrílica sobre tela –
aproximadamente 1989), coleção particular. A artista interpreta as fases de sua
vida, em composição em espiral. O conjunto de imagens que representam sua
fisionomia retrata suas fases de vida: desde a infância (figura de uma menina
de cabelos amarelos, deitada, na base da tela), ascendendo em espiral as fases
da adolescência até a maturidade. O movimento circular indica ação e capta a
atenção do espectador, guiando seus olhos por sobre a tela. As diversas imagens
da face da artista estão envoltas por elementos que lembram a natureza,
sugerindo insetos, flores, folhas e pássaros. Destacamos a imagem do olhar da
artista que, no plano real, também apresenta uma expressão de doçura,
expectativa, languidez e, até mesmo, de certa melancolia; como um clown com o olhar inocente e perdido no
infinito de suas memórias.
A
fusão cósmica da composição circular que predomina na tela, bem como a imagem
das várias faces, das máscaras e dos olhos, além de elementos da natureza,
confere a obra uma ideia de balanço e de vida, de reflexão, de repensar de valores.
As infinitas possibilidades de seus
diversos “Eu(s)” remetem a ideia das
caixas chinesas, cuja estrutura em perspectiva confere um conceito de abismo.
Há algo de enigmático que reside por trás do signo do olhar e, nesta obra, há
imagens de múltiplos olhares: “Mistério; seu nome é mulher”.
O
Poema “Tabacaria”, de Fernando Pessoa (pseudônimo: Álvaro de Campos), expressa
todo o sentimento da trajetória de vida da artista:
Quando
quis tirar a máscara,
estava
pregada à cara.
Quando
a tirei e me vi ao espelho,
já
tinha envelhecido.
Estava
bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei
fora a máscara e dormi no vestiário
como
um cão tolerado pela gerência
por
ser inofensivo
e
vou escrever esta história para provar que sou sublime.
A
Figura 03, “Sem Titulo” (0,30 x 0,40 m, pintura, acrílica sobre Eucatex, c.
1998), coleção particular. Trata-se de um quadro de pequenas dimensões que
pertenceu a um conjunto de obras vencedoras do Concurso de Arte do Hospital
Camilo Penna. A composição circular equilibra-se entre cores quentes e frias,
em sua maioria com o predomínio do azul cobalto e do branco. As formas
circulares das figuras dos anjos que orbitam em torno da imagem da própria
artista compõe um movimento harmonioso e sugerem a ascensão. Segundo as
palavras da pintora: “Oh! Eu sendo abduzida pelos anjos.”
Notamos
que nessa obra, a imagem que sugere as asas dos anjos também se assemelha as
nuvens brancas do céu. Essa visão celestial transferida à tela recria, através
de seu imaginário poético, estrelas brancas que figuram sobre um fundo azul
cobalto. A base da composição representa uma espécie de arranjo de flores
circulares, ou jardim. No imaginário da artista, a ideia da Terra é concebida
através da imagem de flores coloridas circulares. A figura principal do quadro
representa a própria Sônia (usando chapéu) que, com seus olhos fechados,
encontra-se em movimento de ascensão aos céus, como uma sonâmbula, carregada
por querubins. São asas impalpáveis que conduzem uma sonhadora mensageira. Em
termos gerais, essa composição circular encerra a ideia do cosmos e de
eternidade.
No
quadro “Uma mulher e o touro”, Figura 04 (0,44 x 0,74 m, Mista sobre tela, c.
2000), coleção particular, há uma composição em camadas horizontais
sobrepostas. Ocorre o predomínio de tons escuros e detalhes em bronze
(metálico). O elemento principal figura sobre o nível mais elevado e representa
a própria artista que, mais uma vez, apresenta-se de olhos cerrados – sonhando.
Logo abaixo, há uma faixa que representa morangos emparelhados: signo de
fartura e prazer. Na base da tela , observamos a imagem de uma cabeça de touro,
em cor violeta, que se assenta sobre uma faixa de losangos coloridos. Essa
justaposição de camadas, em que a composição ostenta uma ideia de assentamento,
sugere maturidade e expõe que, em seu imaginário, a pintora coloca a figura da
mulher no topo da estratificação figurativa: a mulher é concebida como o ser
completo que protege todas as camadas da vida, sobrepondo-se aos elementos que
representam a matéria. A figura da mulher está relacionada tanto ao universo
material, através da força e da fertilidade, quanto ao espiritual – ideia de
candura e amorosidade.
A
Figura 05, “Eu quero uma casa no campo...” (0,35 x 0,27 m, pintura acrílica
sobre tela, c. 2001), coleção particular, é inspirada nos versos da música de
Elis Regina. Observamos uma composição em camadas horizontais em que o tom
lilás translucido cobre boa parte do fundo superior em azul ultramar, que
representa o céu. O elemento principal da tela representa uma casa cor de rosa
assentada sobre uma colina. As massas de cores secundárias fundem-se
suavemente, compondo uma paisagem abstrata. Torna-se interessante a escolha por
um tom cor de rosa claro para representar a casa, dando ideia de amor e
feminino. A ideia de um lar que sugere amor e repousa no alto de uma montanha
expressa o imaginário poético da artista, em que o ideal de uma casa é sua
ideia de segurança, como um ninho que descansa sobre o lugar mais elevado da
terra. A opção por retratar uma casa em cor de rosa demonstra que, no
imaginário de Sônia, uma casa representa o feminino, a doçura e o amor.
Concluímos
que o estudo do imaginário poético da pintora Sônia Mara Mello, sob a
fenomenologia de Gaston Bachelard, objetiva acrescentar mais uma visão crítica
sobre sua obra, buscando um teor complementar a toda a análise que já
proporcionou.
segunda-feira, 2 de maio de 2016
Mais Poemas
Diante de mim
o grito desatado
o meu discurso roto
o meu atravessar
desatinado
sobre o coro de uma sala
que assalta o meu peito
esburacado.
O bruxo sobe as escadas do
palácio
prepara o meu fantoche num
caldeirão litúrgico
onde o cerimonial é a
hóstia
de uma cabeça
que é o banquete intocável
onde a solenidade é um
cárcere
subsisto emaranhada
tomando meu chá de agonia
A cítara que me fere a
alma
traz junto a um peito
descolorido
uma procissão de fantasmas
labiríntica moradia de um
agarrar de momentos
uma lágrima breve nos
últimos sons de uma ligação interrompida
nenhum grito
apenas o vulto de uma
lembrança
que já ficou velha
a foto é uma trama de
possibilidades imóveis
compondo uma respiração
deserta
na sacada com os olhos a
ausência
de um coração vazio.
Me lavando nesta sede
poderia molhar o teu
cabelo de chuva
me despir diante de teus
olhos molhados
me fazer completa nas
longas fitas
em que te teci
fazer a sesta no teu corpo
de prí mulas e ervas
me fazer linho branco no
arco que
amolda as tuas mãos
me fazer felina neste
submarino
tremulo e dócil em que
transformaha bússola.
Momento atravessado
De flores
Em alamedas
Você
Na figura do pássaro
Passado
poema distanciado
na máquina
dentro do corpo
você que tinha reza nos
olhos
música no corpo
transgredia os muros
avançava o espaço
lacrava minha figura
desfigurava me em azul no
meu corpo
como um arco-íris talvez...
Tenho a cítara e a flauta
Sou um músico
Sou um guerreiro
Enquanto tu só tens
dividas
Nesta alma sem febre
Me chamaram num berro
e era berro de dor
vivia ou estava morta num
tempo de guerra
me perguntavam em ruídos
me faziam ternuras mãos
frias
caminhavam pelo vidro dos
meus olhos
jardim sem flores
cancelaram o meu
pseudo-extase
havia sombra nas pedras
e a terra fermentava
coágulos de sangue
eu despertava com a
sensação de ter possuído a verdade
a verdade nascendo em meu
ventre abstrato
cinza na manhã que não
chegou a amanhecer
a janela se abriu
eu fui ao encontro de um
novo itinerário
nas plataformas de ferro
imensos pássaros sem asas me
olhavam
seus pés recolheram minha
cabeça
amarraram meu cérebro
eu caminhei
inventei versos
o dia estava aberto
desenhei na terra um sonho
para o vento.
A língua do tempo engole
meu dedo
desata meu grito
aplaca meu peito
sangra
ferida crava na vida
estanca
felites vermelhos
escorrendo canta
inútil oportuna alegria
bocas risos dentes
passo espaço movimento
corpo, asas, pássaros
sedentos
cravam as unhas na face do
medo.
OS OLHOS ANDAM DE
ELEVADORES
Alfinetes disponíveis nos
olhos
que são ladeiras e marfins
espera e esfera
lavados
bêbados e sedentos
vendem bilhetes de
estrelas
mas na sopa cotidiana
ficaram empalhados
e se fizeram museus de
retinas
chovem os olhos
andam de elevadores
silenciosos
e transportam um poço
acumulado de ervas
brincam de rios e riachos
e se tornam mar quando
viajam
e procissões quando não
estão
pelo labirinto é que se
chega com sua luz
nem nutrido
nem definido
vem com sabor de paina e
se relata como a solidão de uma rede vazia
porque é no pátio morno da
tarde que se define em oração
porque flutua e sugere
é que tem de horizonte e
sono
estes olhos não tem
ouvidos
porque se ergueram um dia
do fundo de um poço
e se fez tocha
e se fez prece
nada que se divida
tudo que permaneça
agoniadamente só
mesmo maciço e áspero
mesmo interrompido
com seus extremos
ensaiados
com um brilho e sabor de
amêndoas
com um grito que não é
mais mágoa, é susto
um punhal emigra destes
olhos
com muita dor, uma
escondida partícula de seda se desprende
emigra, reproduz
e embala e traça e se faz
rumo reinventado o caminho de uma pássara
que não se esmagou nas
nuvens
e seus olhos feridos se
fazem água
desfazem o pânico absurdo
dos seus discursos
é lá que amadurece e
aflora
se faz fruto e flora
e vai se lapidando
e nele que me enredo e me
lavo
me arranho e acendo as
lâmpadas
faço reverencias
a este silencio que me
comove e me move a rotas onde nunca vou chegar
a estes olhos anárquicos e
silenciosos
eu acendo incensos
acendo as velas no meu
candelabro de prata
estico sobre a mesa as
toalhas de linho branco
e faço a minha prece em
silêncio
a assim faço dos olhos a
minha flauta
e do silencio que o abriga
e o amolda o brilho da sua própria
estrela
e o solto
e ele vai
os olhos
ser um córrego em meio as
estrelas
Sou o tempo onde pisei e
marquei com tiras de sangue o meu caminho
sou as pedras da calçada
desta cidade nublada e fria
sou os troncos que
enumeram as avenidas
sou a peça perdida na
confusão de tantos dias e tantas noites
trago comigo a saudade
suspensa
traçando de giz o meu
coração
lacrando a minha passagem
com sangue
tantas bocas
tantas mãos
tantos olhos
um grito dependurado no
vazio
abraços e murros
colinas e nevoas
um feto que se desenvolve
na imensa barriga da noite
ensopada de água
mergulho na chuvas das
minhas imensas tardes
me abraço desesperada ao
ritmo e ao rito
do meu rosto amassado nos
muros
meus olhos estão cheios de
sal
as mãos trançadas em
caixotes de cimentos
os pés deixando rastros
nos assoalhos do tempo mundo
o coração buzinando fúrias
tardias
adormecidas
gritadas
enfurecidas
o corpo nu deslizando nos
espelhos
fabrica flores de panos
ah! Os panos que me
encobrem
as imensas toalhas
atiradas sobre o meu corpo
no horizontal do tempo
noite dia tarde
os sonhos cobertos de
musgos se desnudam
nas águas daquele rio
entre o céu e a tarde
só eu rompendo
deslizando no som
as formas de ser e de
viver
ah! Aquele amor sem
disfarce talhado de frutos e sonhos
as janelas as portas
os vidros
me impelindo para o outro
lado
quero luz
quero ar
quero aquele abraço
suspenso na ultima tarde do mundo
quero percorrer as
alamedas
quero a vegetação
a combustão
quero ser um rio que vai
quero a alma sentada
o coração cavalgando
os rasos compactos
quero possuir o ultimo
grito
o ultimo abraço
quero ficar na estrela do
mundo
quero ser água e fruto
seiva e chão
quero fazer acrobacias no
ventre do mundo
e ser o circo da minha
história
quero o amigo
um mendigo
o ser que passa
quero um abraço
vindo do fundo do chão
ou vindo da asa de um
pássaro
do pássaro de ferro que eu
construí
e encerrei na minha gaiola
naquele dia de vento
ah! o vento
sempre os ventos
derrubando os meus cabelos sobre o rosto
escondendo os meus olhos
ah! o vento
este maldito que leva e
traz
que me sangra de lamentos
antigos
ah! esta cidade onde eu
plantei esperança e saudade
cheia de denuncias
de mordidas
de muito amor
esta cidade que absorve o
meu coração gasto
e que se abre em nuvens
quando eu me deito nas
curvas do tempo
quando eu me dispo de
ausências
quando eu sou semente
enquanto o coração
descansa
hoje não quero ser
identificada
quero ser um pedaço de
vida
um liquido
uma pálpebra
a lamina de uma faca
quero rasgar o véu
quero ser preguiça no
silencio
o fio que me leve do outro
lado do rio
quero mergulhar
decolar
transpirar
quero um barco
uma bicicleta
me debruçar na janela de
um trem
atravessar na paisagem
viajar na minha lágrima
me embaraçar na solidão
me fecundar de cores
nada que me prenda
desatar os laços
e me envolver nua com o
vento
germinada de tempo
gerada de girassóis
e subir a alameda que me
levará do outro lado do rio...
quero o ri oque vai...
a solidão do seu silêncio.
Vejo o peixe
dormindo
na ponta da
carabina
não é anjo
e nem é mais
peixe
é a dimensão
morta
não atingida
o espaço
dilacerado
o caminho
não sonhado
o serafim
gemendo
o globo
ocular sagrado
respirando
em cima do anjo nu
que é sêmen
e megera
as mãos não
copulam com a vida
um orgasmo
caolho coça as olheira fundas
por onde o
fio da vida emerge
mas não
viaja nem contempla
com o
passaporte nos olhos
e a
identidade nas mãos
lá vai o
poeta em sua fantasia transatlântica
um refugiado
burlando a rotina
de mais um
domingo
de meu
esconderijo eu o observo
pintando seu
quadro de palavras
e você
navegante do meu mar Picassiano
transformo o
silencio das palavras em meditação
reverencio o
mundo em que ele submerge
neste país
somos cúmplices poeta
no momento
em que traças este documento
eu
transformo em traços
a tua
história.
Cupido na
sombra
anjo lúdico
e lucido come o pão de pedra ganho no jogo
chuva que
retorna e embota e o apalpa lambuza e
arrasta
corre e é
antiga como a noite antiga que o fechou
guarda chuva
é de prata e é um ciclo que grita
lama
imune todo
se torna
imagem dourada retida na primeira sombra de uma manhã
que assombra
se colhe e
se recolhe e geme e treme embebido na sua longa asa anarquia
coberto se
detém e não é a paisagem que olha
pó no só sem
nó do azul
e se molha e
se banha e se lava no cheiro que embriaga porque é fruto
como fruto
tem que ser apanhado, comido e satisfeito
porque o
fruto é a imagem equipada aquática
pólipo de
sua própria máscara na cara melada de rugas e fibras
ali no
rochedo mais alto que ele ressona insuflado e alquímico
preso pelas
liras que se enfiam nas correntes que o fazem gigante
finge
rasgada e andante e inerte
venerável
bando de pássaros estes que fazem ninho na sua cabeça
emoldurado
por ervas e heras
tinge de
cores na revoada louca
arma os
braços de polvo se debate entre o tiro e o abraço
reza na
horta
massacra
tudo que foi plantado e grita e berra com sua lágrima de pus
porque azul
é a revoada que o define
pulsa anseia
suspeita
ama o
panorama de éter
se larga nas
planícies pulsantes de sol
veste a
cartola cheia de pombas na cabeça de mágico
abre as
portas do circo
mas é na
vitrine que está desfilando com seu gorro de fitas
seu punho de
mel
enlaça seu
travesseiro e confunde o silencio com folhas
sua
fotografia de domingo
pela chave
da porta
pelo vidro
da janela
por um
telegrama que não veio
pela mão que
não teve aperto
e se
fez galharia
pela
borboleta que se fez coração e não foi útero nem aroma
porque nada
viu nos corcéis tatuados do monólogo da manhã
que foi
fonte e choro
estrela
estéril emigra sem sementes
um navio que
não viaja
um coração
no fundo do chão coberto de latas
olha pelo
terraço do olho estampado
que se
antecipa e se planta
se
arrebentando nos bolsos de uma calça de latas
se veste com
seu paletó de metal
calça suas
botas de estilhaços
pendura a sua
gravata de barro
se esconde
na sua camisa de ferro
e rumina com
suas patas de mel
e do mel que
é apenas dor ele se faz estrada
e vai
com o remo nos olhos
com o
mormaço nas lembranças
sobe as
colinas com seus guizos
desce as
montanhas com suas flautas
e não é mais
anjo, é ovelha
e da ovelha
naquela manhã só ficou a saudade de por um momento ser pastor.
Do artista
do homem
seus uivos e
seus lobos
se veste a
noite com sua capa de brocados azuis
pendura em
seus olhos uma águia
faminta e
chorosa
que grita
pela fome de uma montanha
que um dia
pensou ter girassóis
e que hoje
gritam dentro de uma geladeira
a geladeira
ficou amarela de girassóis congelados
a sobremesa
da noite é um mundo
careca que
chora a ressaca
como uma
velha vagabunda
encostada as
raízes industriais de uma cidade coroada de cimento
mumificada e
encostada lambes
um sol não
poente de um mundo
sem olho e
sem tesão
no meu fogão
cozinho as sombras
de uma
civilização formal, utópica e
onerosa como um gato sem faro
dos meus
olhos para passear nas
trombas de
um elefante em busca
de uma
existência menos falida
abro o
armário
lá dorme um
sono histórico
pesadas
roupas cheias de recursos e histórias
gritam pelo
meu tanque de lágrimas
querem se
lavar na minha pele
de centauro
abro as
portas
estão
emperradas
do espelho
escorrem listas verdes
que levam
meus olhos a rodar
em
descomunal roda gigante
miopia de
uma escadaria
em busca de
anjos mortos debaixo
de meu
travesseiro
na mesa de
jantar sobre um prato
vazio recita
um poema sem rumo
uma as de
algum anjo morador
de um
colapso amedrontado
fazendo filas
e pincéis
como fossem
corcéis alucinados
riscam
flores sobre as lâmpadas
magnifico
abismo das cores espalham
partículas
de fantasmas vivos
viajo de
ônibus pelas cortinas
carregando a
minha mala de violinos
talvez para
fazer um comício de flautas
para os
ratos que Hamellin esqueceu
aqui por
esta estrada fechada
por este
mundo desembalado e indócil
e assim
caminha o artista
solitário
silencioso
como um gato
levando o êxtase
nos pelos
Dizem que
seu mundo é absurdo
eu diria que
só está vivo por ser
uma
caminhante heroico de
chutes e
estrelas
absurdo é
o mundo
aqui embaixo
da ponte
carregantes
de uma faixa
de luz no
peito
eu bendigo a
todos aqueles
que
conseguiram sair da estrada
e invadir o
mundo da criação
faço
reverencia
aos lobos
e seus
uivos.
Da mulher e
sua vida
Vida
como abrigo
integrada
nesta paisagem tardia
reencontro
nos teus olhos a vinda e a ida
de todos os
dias
vida
como teto
chão
cheiro de
terra fértil
com tantas
marcas fundas
tantas
espadas numa única mão
vida
tanto
sofrida
tanto ferida
de tantas
partidas
tantos voos
muitas asas
nos teus olhos
muitos
pássaros nos teus espaços
muita
solidão em tua amplidão
como um
pássaro teu céu se descobre
neste
território de tábuas
há um lábio
rolando
há um beijo
resvalando
há uma
hélice encoberta pelo pano
entre a
hélice e o pano
muitos
segredos
o coração é
uma usina apitando
a saudade
está sentada na cadeira
de balanço
o habitante
daquele tenso último abraço
sobrevoa as
platibandas do meu espaço
tu é ainda a
fruta que eu como
com prazer
é o garfo e
faca com que eu corto
o meu
alimento
faço de
minha mesa
o meu chá
das 3.
Hoje agora
que é tão
tarde
e em mim
desnuda
e
partida
figura um
coração de mola
me olhas
me perguntas
teus olhos
vestidos de angustias
observam
ora criança
despertei mais esta manhã
formando
chuva
só tenho
poemas
e estou
molhada e só
no dia todo
não existirá nenhum
pedaço de
nuvem que nos abrigue
não existem
mais parques
precisas
acreditar
as flores
estão distantes
que as
crianças não sabem mais brincar
não sabem
mais chegar nem ficar
estamos com
muita pressa e o amor
é muito
manso.
Assinar:
Postagens (Atom)