O presente estudo visa estabelecer uma análise da
obra pictórica da artista plástica contemporânea Sônia Mara Mello, sob os
conceitos da fenomenologia de Gaston Bachelard.
Realizar uma leitura fenomenológica da pintura de Sônia Mara
Mello, significa valorizar eu referencial poético inspirador, através de suas
impressões trazidas dos diversos ambientes
e meios artísticos dos quais participou.
Reduzi-la ao âmbito da pintura, trata-se de mero recurso
didático, pois a artista é premiada também no Teatro (roteiro, direção e
atuação), possui extensa produção literária na poesia, na confecção de
estamparia, vestuário e artesanato.
Acima de tudo o que torna mais intrigante sua produção é a
busca de liberdade expressiva através da irreverencia das composições e das
combinações cromáticas.
A artista traz o universo imaginário do Circo, do Teatro e da
poesia para o bidimensional. Seus quadros passam a ser uma espécie de reflexo
de seu universo interior e de sua própria imagem; seu olhar e sua fisionomia
somam-se a figuração de elementos da
natureza.
Essencialmente, sua festa de cores e imagens inclui um
banquete de referencias claras a sua vivencia campesina, pois trata-se de uma
que oscilou entre a urbanidade e seus ambientes e a ruralidades e seus elementos vegetais e animais. O trecho
de um poema de Pablo Neruda, abaixo, expressa o imaginário da pintora sobre
banquetes e festas.
Deus,
dá-me a festa mágica na minha vida,
Dá-me
teus fogos para iluminar a terra,
Deixa
em meu coração tua lâmpada acendida
Para
que eu seja o óleo de tua luz suprema.
E
eu irei pelos campos na noite estrelada
Com
os braços abertos e a face desnuda,
Cantando
árias ingênuas com as mesmas palavras
Com
que na noite falam os campos e a lua.
Em
sua pintura, deparamo-nos com sua imagem facial expressando o fascínio pelas
máscaras e chapéus, pelos recursos da maquiagem e pela cena visual que encerra
aspectos da teatralidade – com traços da Commedia del Arte, rica em
personagens-tipo, como o pierrot e o jardineiro. Como se assistíssemos a uma
espécie de palco-tela, em que personagens secundários e fabulosos preenchessem
os espaços que envolvem a imagem da própria artista.
A
artista retrata a si mesma, recriando-se em diversas cenas, como em um vôo
imaginário. Sua imagem vê-se, comumente, envolvida por elementos da fauna e da
flora, acompanhada de um candelabro, do teclado de um piano, e às vezes, por um
clarim – referências diretas a música, ao gosto por festas e a ambientes
noturnos e pela natureza. Confirmando o conceito de Bachelard (in: Bachelard, G. O ar e os sonhos, 2001,
pág.29) a respeito de uma alma formada na vida noturna, na vida inconsciente
espantosamente homogênea do sonho: Para algumas almas, ébrias de onirismo, os
dias são feitos para explicar as noites.
Sua
pintura em superfície bidimensional varia da tela em tecido ao Eucatex, mas
ultrapassando também os limites do que representa a Arte e a distingue do
artesanato. A artista imprime sua criatividade em diversos objetos de
artesanato (caixas, estojos, cerâmica e estamparia de tecidos), muitas vezes
convertidos em objeto-arte.
Durante
seu intervalo de criação artística, há uma extensa produção de artesanato,
colocando-se em dia com todo o tipo de inovação oferecida pelo setor. Explora
novas texturas e brilhos (metálicos, perolados e granulados), mantendo-se up-to-date com o mercado de produtos,
compatíveis com o material da tinta acrílica e das superfícies em que trabalha.
A artista busca também seu referencia poético através das viagens, do Cienama,
do entretenimento e da literatura, dos quais apreende novas impressões para
transportar à tela.
Torna-se
interessante observar, que voltando para a tela sua produção artística
apresenta inovações em termos de criatividade, que provem da adoção das
diversas técnicas aprendidas do artesanato. Destacam-se desta fase os trabalhos
em técnica mista expostos em Paris (2006).
Na
realidade , a pintora possui quase toda sua produção em técnica mista (mixed
media), considerando-se que em sua pintura há presença tanto da picturalidade
conferida pelo uso da tinta acrílica, sob as camadas translúcidas e também
opacas, quanto do grafismo executado com o pincel ou com o crayon. Muitas vezes
observamos o uso da colagem (inspirada nos papiers
collés) que pode vir expressa através de uma interferência poética escrita
ou mesmo de retalhos de peças de renda – usando do conceito estabelecido por
Picasso, trompe l’espirit, a respeito
da criação artística calcada na liberdade de espirito.
Em
termos gerais sua produção artística representa uma busca incessante por novos
recursos materiais que a tecnologia contemporânea oferece, como o usodas mais
variadas texturas e máscaras de aplicação ao bidimensional e sobretudo, através
do intercambio de novas técnicas utilizadas por consagrados artistas locais.
Visita ateliês de amigos como o de Malke Lima (especialista em objetos-arte:
baús, caixas e estojos coloridos e com motivos em relevo) e Regina Oliveira
(pintura mista sobre tela e papel).
A
CASA E O UNIVERSO
Com
relação ao espaço-ateliê, temos observado, desde 1990 que o foco múltiplo do
universo do teatro e suas luzes (incluindo presença da penumbra), compõe o
local da criação. Os ambientes variam do ateliê da rua Vicente Machado, em seu
pequeno apartamento cuja iluminação era precária, a ventilação quase nula e o
espaço como o de um elevador lotado, passando para uma espécie de garagem,
chamada de fábrica da Arte em um fundo
de escritório, ainda em frente ao seu apartamento da Vicente. Mas inclui também
seus espaços na Feirinha de domingo e na Praça em frente ao Museu Paranaense,
no espaço de Artesanato e até o sobrado do bairro Vista Alegre.
Em
seu atual estúdio, a casa, um grande sobrado de três andares, conta com uma
escadaria em duas espirais – com um aspecto de recuo visual e perspectiva de
câmera, e também com uma acústica favorável a grande distancia. Na cobertura – sempre uma fornalha, como
todos os seus estúdios – há uma disposição muito semelhante a uma coxia de
teatro; um apinhado de coisinhas, organizadas em disposição horizontal. Em um
canto extremo, como um ninho, há uma espécie de camarim. Como se não
encontrasse outra saída: um cantinho no sótão para pintar.
Possui
uma bancada de tintas semelhante a uma penteadeira, uma luminária, um
ventilador e dois ou três quadros imensos, como se fossem espelhos, onde sua
imagem mostra-se refletida e recebe as tintas, como uma maquiagem, as cores e
elementos da natureza, como se fossem saindo do peito da artista, para compor
sua roupagem. Mas agora, seu palco é Paris.
Sonia
Mara Mello tem participado de exposições por açguns países da europa, tais como
França e Espanha. Sua arte vem recebendo boa aceitação, por suas qualidades pictóricas
e cromáticas e seu talento criativo pleno de lirismo.
Na
fenomenologia de Bachelard, (in: Bachelard, G. A poética do espaço, 2000,
pág.55), encontramos a relação dos ambientes da casa e do quarto, dos poetas e
artistas, relacionada intimamente com sua produção artística. O acolhimento
proporcionado pelo lar e seus ambientes, nos quais o artista busca trazer o
universo externo para dentro de seu universo interno, torna-se uma demonstração
de sua generosidade, do gosto pelo colorido, pela natureza e pela multiplicidade
dos elementos que traduzem conforto físico – como almofadas, poltronas, chaise,
o ambiente acolhedor da minúscula piscina e do jardim de inverno e, até mesmo,
da churrasqueira que se abre para integra-se à sala de jantar unindo todos os
espaços em um só.
A
comunhão dinâmica entre o homem e a casa faz transcender espaços geométricos
(Bachelard, 2000, pág.62). É por isso que há uma queda d’água sobre a água, nos fundos do quintal, e uma
escadaria no meio das salas do térreo, em uma espécie de fusão da verticalidade
com os elementos que deitam sobre a terra. Como expressa o poeta Claude Hartman
(in: Bachelard, 2000. Pág.67) “Pela escada das árvores / Nós subimos”. Trata-se
de um espaço colorido e dinâmico, em que o universo vem habitar sua casa
(p.67).
A
imagem é inspiradora, conforme Bachelard (2000. Pág.68), “ (...) os espaços
armados nem sempre querem ficar fechados! Eles se desdobram. Parece que se
transportam facilmente para outros lugares, para outros tempos, para planos
diferentes de sonhos e lembranças.” Essa ideia é reforçada pelos ambientes do
sobrado citadino, mas também pela “casa da montanha” – seu cottage da fria
região metropolitana – e sua morada no litoral. Mas, acima de tudo, seus
ambientes são lembranças do sítio em que viveu no castelinho e de tantos outros
ambientes urbanos e campesinos, desta e de outras vidas – como costuma cogitar.
Alojado em toda a parte, mas sem estar preso a lugar
algum, essa é a divisa do sonhador de moradas. Na casa final, como em minha
casa real, o devaneio de habitar se vê logrado. È preciso sempre deixar aberto
um aberto um devaneio de outro lugar.
Bachelard,
Gaston. A poética do espaço, São Paulo, Martins Fontes, 2000. Pág.75
Na
realidade, Sônia Mara Mello, em todos os
lugares pelos quais passa, acaba por estampar as fauves de seu ateliê. Em termos gerais, seu estúdio passa a
refletir-se em todos os cômodos, de todos os lugares que habita.
Bachelard
(2000. Pág. 103) expressa a idéia de “ninho” ao ambiente íntimo de refúgio e
cita Vitor Hugo , que associa as imagens e o seres da função de habitar , reforçando que o
ambiente mais íntimo, é “para Quasímodo, a catedral, o ovo, o ninho, a casa, a
pátria, o universo. Quase poderia dizer que ele havia tomado a forma dela, como
o caracol toma a forma da concha”. Torna-se esta a forma como podemos comparar
o ambiente da criação de Sônia: no terceiro piso de sua morada, a rtista lembra
o personagem Quasímodo, em seu campanário – qual os pombos e gárgulas empoleirados
e agitados no cume da rugosa catedral.
Ninhos
brancos, teus pássaros vão florir.
Haveis
de voar, veredas de penas.
(Robert Ganzo, “Lóeuvre poétique”)
OBRAS
DE ARTE
Para
fins didáticos, passaremos a análise de apenas algumas obras da pintura de
Sônia Mara Mello. Sendo a artista plástica uma consagrada expoente da pintura
paranaense, não pretendemos determinar este estudo crítico como definitivo, mas
complementar as críticas recebidas anteriormente.
A
Figura 1 “Pierrot” (0,50 x 0,70 m, técnica mista, c.1993, acrílica sobre Eucatex),
coleção particular. Trata-se de uma composição circular cuja figura de um pierrot destaca-se como o elemento
principal. Observe-se a presença de grafismo, caracterizando traços
esquemáticos, executados em tinta branca, sugerindo uma cartola que coroa a
imagem de um palhaço, sob um colorido tasche,
de cores que se interpõe em blocos geométricos. Destaque especial para a
gola, composta em semicírculo, a qual encerra elementos da natureza que lembram
folhas verdes, borboletas amarelas e uma rosa vermelha (que figura como uma
espécie de nó). As massas de cor equilibram
o conjunto que traduz o momento de alívio, ou inspiração. Em que a
figura do palhaço mostra-se de olhos cerrados, em um momento que remete ao
universo onírico.
Segundo
as palavras da própria artista, “as minhas bonecas só dormem”. É como se o
universo fantasioso de um ator fosse traduzido em um momento de sonho: a imagem
dos olhos fechados. A imagem do sonho – como um voo – em que muitas vezes, os
personagens da tela da artista se encontram, neste quadro, faz-se representar –
além da imagem dos olhos fechados – pela gola de borboletas e pelos traços que
sugerem uma cartola branca – como um voo para o imaterial.
De
acordo com Bachelard (2001. Pág.19), a
imagem poética do voo engloba a a busca do homem em transpor obstáculos físicos
e seu voo para o etéreo. É quando o ser se desprende dos entraves terrenos e se
lança no cosmos, buscando a união com Deus, em uma fantasiosa viagem ao
infinito. Citando, em sequencia Cyrano de Bergerac (p. 37), no “Preface à l’historie comique dês états et
empires”: “Em minha mais bela idade, parecia-me, ao dormir, que tornando-me
leve, eu me elevava até as nuvens...”
MINHA ALMA é um carrossel vazio no
crepúsculo...
Pablo Neruda
A
Figura 02, “Fases da minha vida” (0,72 x 0,98 m. Pintura acrílica sobre tela –
aproximadamente 1989), coleção particular. A artista interpreta as fases de sua
vida, em composição em espiral. O conjunto de imagens que representam sua
fisionomia retrata suas fases de vida: desde a infância (figura de uma menina
de cabelos amarelos, deitada, na base da tela), ascendendo em espiral as fases
da adolescência até a maturidade. O movimento circular indica ação e capta a
atenção do espectador, guiando seus olhos por sobre a tela. As diversas imagens
da face da artista estão envoltas por elementos que lembram a natureza,
sugerindo insetos, flores, folhas e pássaros. Destacamos a imagem do olhar da
artista que, no plano real, também apresenta uma expressão de doçura,
expectativa, languidez e, até mesmo, de certa melancolia; como um clown com o olhar inocente e perdido no
infinito de suas memórias.
A
fusão cósmica da composição circular que predomina na tela, bem como a imagem
das várias faces, das máscaras e dos olhos, além de elementos da natureza,
confere a obra uma ideia de balanço e de vida, de reflexão, de repensar de valores.
As infinitas possibilidades de seus
diversos “Eu(s)” remetem a ideia das
caixas chinesas, cuja estrutura em perspectiva confere um conceito de abismo.
Há algo de enigmático que reside por trás do signo do olhar e, nesta obra, há
imagens de múltiplos olhares: “Mistério; seu nome é mulher”.
O
Poema “Tabacaria”, de Fernando Pessoa (pseudônimo: Álvaro de Campos), expressa
todo o sentimento da trajetória de vida da artista:
Quando
quis tirar a máscara,
estava
pregada à cara.
Quando
a tirei e me vi ao espelho,
já
tinha envelhecido.
Estava
bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei
fora a máscara e dormi no vestiário
como
um cão tolerado pela gerência
por
ser inofensivo
e
vou escrever esta história para provar que sou sublime.
A
Figura 03, “Sem Titulo” (0,30 x 0,40 m, pintura, acrílica sobre Eucatex, c.
1998), coleção particular. Trata-se de um quadro de pequenas dimensões que
pertenceu a um conjunto de obras vencedoras do Concurso de Arte do Hospital
Camilo Penna. A composição circular equilibra-se entre cores quentes e frias,
em sua maioria com o predomínio do azul cobalto e do branco. As formas
circulares das figuras dos anjos que orbitam em torno da imagem da própria
artista compõe um movimento harmonioso e sugerem a ascensão. Segundo as
palavras da pintora: “Oh! Eu sendo abduzida pelos anjos.”
Notamos
que nessa obra, a imagem que sugere as asas dos anjos também se assemelha as
nuvens brancas do céu. Essa visão celestial transferida à tela recria, através
de seu imaginário poético, estrelas brancas que figuram sobre um fundo azul
cobalto. A base da composição representa uma espécie de arranjo de flores
circulares, ou jardim. No imaginário da artista, a ideia da Terra é concebida
através da imagem de flores coloridas circulares. A figura principal do quadro
representa a própria Sônia (usando chapéu) que, com seus olhos fechados,
encontra-se em movimento de ascensão aos céus, como uma sonâmbula, carregada
por querubins. São asas impalpáveis que conduzem uma sonhadora mensageira. Em
termos gerais, essa composição circular encerra a ideia do cosmos e de
eternidade.
No
quadro “Uma mulher e o touro”, Figura 04 (0,44 x 0,74 m, Mista sobre tela, c.
2000), coleção particular, há uma composição em camadas horizontais
sobrepostas. Ocorre o predomínio de tons escuros e detalhes em bronze
(metálico). O elemento principal figura sobre o nível mais elevado e representa
a própria artista que, mais uma vez, apresenta-se de olhos cerrados – sonhando.
Logo abaixo, há uma faixa que representa morangos emparelhados: signo de
fartura e prazer. Na base da tela , observamos a imagem de uma cabeça de touro,
em cor violeta, que se assenta sobre uma faixa de losangos coloridos. Essa
justaposição de camadas, em que a composição ostenta uma ideia de assentamento,
sugere maturidade e expõe que, em seu imaginário, a pintora coloca a figura da
mulher no topo da estratificação figurativa: a mulher é concebida como o ser
completo que protege todas as camadas da vida, sobrepondo-se aos elementos que
representam a matéria. A figura da mulher está relacionada tanto ao universo
material, através da força e da fertilidade, quanto ao espiritual – ideia de
candura e amorosidade.
A
Figura 05, “Eu quero uma casa no campo...” (0,35 x 0,27 m, pintura acrílica
sobre tela, c. 2001), coleção particular, é inspirada nos versos da música de
Elis Regina. Observamos uma composição em camadas horizontais em que o tom
lilás translucido cobre boa parte do fundo superior em azul ultramar, que
representa o céu. O elemento principal da tela representa uma casa cor de rosa
assentada sobre uma colina. As massas de cores secundárias fundem-se
suavemente, compondo uma paisagem abstrata. Torna-se interessante a escolha por
um tom cor de rosa claro para representar a casa, dando ideia de amor e
feminino. A ideia de um lar que sugere amor e repousa no alto de uma montanha
expressa o imaginário poético da artista, em que o ideal de uma casa é sua
ideia de segurança, como um ninho que descansa sobre o lugar mais elevado da
terra. A opção por retratar uma casa em cor de rosa demonstra que, no
imaginário de Sônia, uma casa representa o feminino, a doçura e o amor.
Concluímos
que o estudo do imaginário poético da pintora Sônia Mara Mello, sob a
fenomenologia de Gaston Bachelard, objetiva acrescentar mais uma visão crítica
sobre sua obra, buscando um teor complementar a toda a análise que já
proporcionou.
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