sexta-feira, 27 de maio de 2016

O ESPAÇO E O IMAGINARIO POÉTICO NA PINTURA DE SONIA MARA MELLO (Mauro Scaramuzza Filho, 2006)



O presente estudo visa estabelecer uma análise da obra pictórica da artista plástica contemporânea Sônia Mara Mello, sob os conceitos da fenomenologia de Gaston Bachelard.
Realizar uma leitura fenomenológica da pintura de Sônia Mara Mello, significa valorizar eu referencial poético inspirador, através de suas impressões trazidas dos diversos ambientes   e meios artísticos dos quais participou.
Reduzi-la ao âmbito da pintura, trata-se de mero recurso didático, pois a artista é premiada também no Teatro (roteiro, direção e atuação), possui extensa produção literária na poesia, na confecção de estamparia, vestuário e artesanato.
Acima de tudo o que torna mais intrigante sua produção é a busca de liberdade expressiva através da irreverencia das composições e das combinações cromáticas.
A artista traz o universo imaginário do Circo, do Teatro e da poesia para o bidimensional. Seus quadros passam a ser uma espécie de reflexo de seu universo interior e de sua própria imagem; seu olhar e sua fisionomia somam-se a figuração  de elementos da natureza.
Essencialmente, sua festa de cores e imagens inclui um banquete de referencias claras a sua vivencia campesina, pois trata-se de uma que oscilou entre a urbanidade e seus ambientes e a ruralidades e  seus elementos vegetais e animais. O trecho de um poema de Pablo Neruda, abaixo, expressa o imaginário da pintora sobre banquetes e festas.
            Deus, dá-me a festa mágica na minha vida,
            Dá-me teus fogos para iluminar a terra,
            Deixa em meu coração tua lâmpada acendida
            Para que eu seja o óleo de tua luz suprema.

            E eu irei pelos campos na noite estrelada
            Com os braços abertos e a face desnuda,
            Cantando árias ingênuas com as mesmas palavras
            Com que na noite falam os campos e a lua.

Em sua pintura, deparamo-nos com sua imagem facial expressando o fascínio pelas máscaras e chapéus, pelos recursos da maquiagem e pela cena visual que encerra aspectos da teatralidade – com traços da Commedia del Arte, rica em personagens-tipo, como o pierrot e o jardineiro. Como se assistíssemos a uma espécie de palco-tela, em que personagens secundários e fabulosos preenchessem os espaços que envolvem a imagem da própria artista.
A artista retrata a si mesma, recriando-se em diversas cenas, como em um vôo imaginário. Sua imagem vê-se, comumente, envolvida por elementos da fauna e da flora, acompanhada de um candelabro, do teclado de um piano, e às vezes, por um clarim – referências diretas a música, ao gosto por festas e a ambientes noturnos e pela natureza. Confirmando o conceito de Bachelard  (in: Bachelard, G. O ar e os sonhos, 2001, pág.29) a respeito de uma alma formada na vida noturna, na vida inconsciente espantosamente homogênea do sonho: Para algumas almas, ébrias de onirismo, os dias são feitos para explicar as noites.
Sua pintura em superfície bidimensional varia da tela em tecido ao Eucatex, mas ultrapassando também os limites do que representa a Arte e a distingue do artesanato. A artista imprime sua criatividade em diversos objetos de artesanato (caixas, estojos, cerâmica e estamparia de tecidos), muitas vezes convertidos em objeto-arte.
Durante seu intervalo de criação artística, há uma extensa produção de artesanato, colocando-se em dia com todo o tipo de inovação oferecida pelo setor. Explora novas texturas e brilhos (metálicos, perolados e granulados), mantendo-se up-to-date com o mercado de produtos, compatíveis com o material da tinta acrílica e das superfícies em que trabalha. A artista busca também seu referencia poético através das viagens, do Cienama, do entretenimento e da literatura, dos quais apreende novas impressões para transportar à tela.
Torna-se interessante observar, que voltando para a tela sua produção artística apresenta inovações em termos de criatividade, que provem da adoção das diversas técnicas aprendidas do artesanato. Destacam-se desta fase os trabalhos em técnica mista expostos em Paris (2006).
Na realidade , a pintora possui quase toda sua produção em técnica mista (mixed media), considerando-se que em sua pintura há presença tanto da picturalidade conferida pelo uso da tinta acrílica, sob as camadas translúcidas e também opacas, quanto do grafismo executado com o pincel ou com o crayon. Muitas vezes observamos o uso da colagem (inspirada nos papiers collés) que pode vir expressa através de uma interferência poética escrita ou mesmo de retalhos de peças de renda – usando do conceito estabelecido por Picasso, trompe l’espirit, a respeito da criação artística calcada na liberdade de espirito.
Em termos gerais sua produção artística representa uma busca incessante por novos recursos materiais que a tecnologia contemporânea oferece, como o usodas mais variadas texturas e máscaras de aplicação ao bidimensional e sobretudo, através do intercambio de novas técnicas utilizadas por consagrados artistas locais. Visita ateliês de amigos como o de Malke Lima (especialista em objetos-arte: baús, caixas e estojos coloridos e com motivos em relevo) e Regina Oliveira (pintura mista sobre tela e papel).

A CASA E O UNIVERSO

Com relação ao espaço-ateliê, temos observado, desde 1990 que o foco múltiplo do universo do teatro e suas luzes (incluindo presença da penumbra), compõe o local da criação. Os ambientes variam do ateliê da rua Vicente Machado, em seu pequeno apartamento cuja iluminação era precária, a ventilação quase nula e o espaço como o de um elevador lotado, passando para uma espécie de garagem, chamada de fábrica da Arte  em um fundo de escritório, ainda em frente ao seu apartamento da Vicente. Mas inclui também seus espaços na Feirinha de domingo e na Praça em frente ao Museu Paranaense, no espaço de Artesanato e até o sobrado do bairro Vista Alegre.
Em seu atual estúdio, a casa, um grande sobrado de três andares, conta com uma escadaria em duas espirais – com um aspecto de recuo visual e perspectiva de câmera, e também com uma acústica favorável a grande distancia.  Na cobertura – sempre uma fornalha, como todos os seus estúdios – há uma disposição muito semelhante a uma coxia de teatro; um apinhado de coisinhas, organizadas em disposição horizontal. Em um canto extremo, como um ninho, há uma espécie de camarim. Como se não encontrasse outra saída: um cantinho no sótão para pintar.
Possui uma bancada de tintas semelhante a uma penteadeira, uma luminária, um ventilador e dois ou três quadros imensos, como se fossem espelhos, onde sua imagem mostra-se refletida e recebe as tintas, como uma maquiagem, as cores e elementos da natureza, como se fossem saindo do peito da artista, para compor sua roupagem. Mas agora, seu palco é Paris.
Sonia Mara Mello tem participado de exposições por açguns países da europa, tais como França e Espanha. Sua arte vem recebendo boa aceitação, por suas qualidades pictóricas e cromáticas e seu talento criativo pleno de lirismo.
Na fenomenologia de Bachelard, (in: Bachelard, G. A poética do espaço, 2000, pág.55), encontramos a relação dos ambientes da casa e do quarto, dos poetas e artistas, relacionada intimamente com sua produção artística. O acolhimento proporcionado pelo lar e seus ambientes, nos quais o artista busca trazer o universo externo para dentro de seu universo interno, torna-se uma demonstração de sua generosidade, do gosto pelo colorido, pela natureza e pela multiplicidade dos elementos que traduzem conforto físico – como almofadas, poltronas, chaise, o ambiente acolhedor da minúscula piscina e do jardim de inverno e, até mesmo, da churrasqueira que se abre para integra-se à sala de jantar unindo todos os espaços em um só.
A comunhão dinâmica entre o homem e a casa faz transcender espaços geométricos (Bachelard, 2000, pág.62). É por isso que há uma queda d’água sobre  a água, nos fundos do quintal, e uma escadaria no meio das salas do térreo, em uma espécie de fusão da verticalidade com os elementos que deitam sobre a terra. Como expressa o poeta Claude Hartman (in: Bachelard, 2000. Pág.67) “Pela escada das árvores / Nós subimos”. Trata-se de um espaço colorido e dinâmico, em que o universo vem habitar sua casa (p.67).
A imagem é inspiradora, conforme Bachelard (2000. Pág.68), “ (...) os espaços armados nem sempre querem ficar fechados! Eles se desdobram. Parece que se transportam facilmente para outros lugares, para outros tempos, para planos diferentes de sonhos e lembranças.” Essa ideia é reforçada pelos ambientes do sobrado citadino, mas também pela “casa da montanha” – seu cottage da fria região metropolitana – e sua morada no litoral. Mas, acima de tudo, seus ambientes são lembranças do sítio em que viveu no castelinho e de tantos outros ambientes urbanos e campesinos, desta e de outras vidas – como costuma cogitar.

Alojado em toda a parte, mas sem estar preso a lugar algum, essa é a divisa do sonhador de moradas. Na casa final, como em minha casa real, o devaneio de habitar se vê logrado. È preciso sempre deixar aberto um aberto um devaneio de outro lugar.


Bachelard, Gaston. A poética do espaço, São Paulo, Martins Fontes, 2000. Pág.75

Na realidade, Sônia Mara Mello, em  todos os lugares pelos quais passa, acaba por estampar as fauves de seu ateliê. Em termos gerais, seu estúdio passa a refletir-se em todos os cômodos, de todos os lugares que habita.

Bachelard (2000. Pág. 103) expressa a idéia de “ninho” ao ambiente íntimo de refúgio e cita Vitor Hugo , que associa as imagens e o seres  da função de habitar , reforçando que o ambiente mais íntimo, é “para Quasímodo, a catedral, o ovo, o ninho, a casa, a pátria, o universo. Quase poderia dizer que ele havia tomado a forma dela, como o caracol toma a forma da concha”. Torna-se esta a forma como podemos comparar o ambiente da criação de Sônia: no terceiro piso de sua morada, a rtista lembra o personagem Quasímodo, em seu campanário – qual os pombos e gárgulas empoleirados e agitados no cume da rugosa catedral.
           
            Ninhos brancos, teus pássaros vão florir.
            Haveis de voar, veredas de penas.
            (Robert Ganzo, “Lóeuvre poétique”)

OBRAS DE ARTE

Para fins didáticos, passaremos a análise de apenas algumas obras da pintura de Sônia Mara Mello. Sendo a artista plástica uma consagrada expoente da pintura paranaense, não pretendemos determinar este estudo crítico como definitivo, mas complementar as críticas recebidas anteriormente.
A Figura 1 “Pierrot” (0,50 x 0,70 m, técnica mista, c.1993, acrílica sobre Eucatex), coleção particular. Trata-se de uma composição circular cuja figura de um pierrot destaca-se como o elemento principal. Observe-se a presença de grafismo, caracterizando traços esquemáticos, executados em tinta branca, sugerindo uma cartola que coroa a imagem de um palhaço, sob um colorido tasche, de cores que se interpõe em blocos geométricos. Destaque especial para a gola, composta em semicírculo, a qual encerra elementos da natureza que lembram folhas verdes, borboletas amarelas e uma rosa vermelha (que figura como uma espécie de nó). As massas de cor equilibram  o conjunto que traduz o momento de alívio, ou inspiração. Em que a figura do palhaço mostra-se de olhos cerrados, em um momento que remete ao universo onírico.
Segundo as palavras da própria artista, “as minhas bonecas só dormem”. É como se o universo fantasioso de um ator fosse traduzido em um momento de sonho: a imagem dos olhos fechados. A imagem do sonho – como um voo – em que muitas vezes, os personagens da tela da artista se encontram, neste quadro, faz-se representar – além da imagem dos olhos fechados – pela gola de borboletas e pelos traços que sugerem uma cartola branca – como um voo para o imaterial.
De acordo com Bachelard (2001. Pág.19),  a imagem poética do voo engloba a a busca do homem em transpor obstáculos físicos e seu voo para o etéreo. É quando o ser se desprende dos entraves terrenos e se lança no cosmos, buscando a união com Deus, em uma fantasiosa viagem ao infinito. Citando, em sequencia Cyrano de Bergerac (p. 37), no “Preface à l’historie comique dês états et empires”: “Em minha mais bela idade, parecia-me, ao dormir, que tornando-me leve, eu me elevava até as nuvens...”
           
            MINHA ALMA é um carrossel vazio no crepúsculo...
            Pablo Neruda


A Figura 02, “Fases da minha vida” (0,72 x 0,98 m. Pintura acrílica sobre tela – aproximadamente 1989), coleção particular. A artista interpreta as fases de sua vida, em composição em espiral. O conjunto de imagens que representam sua fisionomia retrata suas fases de vida: desde a infância (figura de uma menina de cabelos amarelos, deitada, na base da tela), ascendendo em espiral as fases da adolescência até a maturidade. O movimento circular indica ação e capta a atenção do espectador, guiando seus olhos por sobre a tela. As diversas imagens da face da artista estão envoltas por elementos que lembram a natureza, sugerindo insetos, flores, folhas e pássaros. Destacamos a imagem do olhar da artista que, no plano real, também apresenta uma expressão de doçura, expectativa, languidez e, até mesmo, de certa melancolia; como um clown com o olhar inocente e perdido no infinito de suas memórias.
A fusão cósmica da composição circular que predomina na tela, bem como a imagem das várias faces, das máscaras e dos olhos, além de elementos da natureza, confere a obra uma ideia de balanço e de vida, de reflexão, de repensar de valores. As infinitas possibilidades  de seus diversos “Eu(s)”  remetem a ideia das caixas chinesas, cuja estrutura em perspectiva confere um conceito de abismo. Há algo de enigmático que reside por trás do signo do olhar e, nesta obra, há imagens de múltiplos olhares: “Mistério; seu nome é mulher”.
O Poema “Tabacaria”, de Fernando Pessoa (pseudônimo: Álvaro de Campos), expressa todo o sentimento da trajetória de vida da artista:

            Quando quis tirar a máscara,
            estava pregada à cara.
            Quando a tirei e me vi ao espelho,
            já tinha envelhecido.
            Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.

            Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
            como um cão tolerado pela gerência
            por ser inofensivo
            e vou escrever esta história para provar que sou sublime.

A Figura 03, “Sem Titulo” (0,30 x 0,40 m, pintura, acrílica sobre Eucatex, c. 1998), coleção particular. Trata-se de um quadro de pequenas dimensões que pertenceu a um conjunto de obras vencedoras do Concurso de Arte do Hospital Camilo Penna. A composição circular equilibra-se entre cores quentes e frias, em sua maioria com o predomínio do azul cobalto e do branco. As formas circulares das figuras dos anjos que orbitam em torno da imagem da própria artista compõe um movimento harmonioso e sugerem a ascensão. Segundo as palavras da pintora: “Oh! Eu sendo abduzida pelos anjos.”
Notamos que nessa obra, a imagem que sugere as asas dos anjos também se assemelha as nuvens brancas do céu. Essa visão celestial transferida à tela recria, através de seu imaginário poético, estrelas brancas que figuram sobre um fundo azul cobalto. A base da composição representa uma espécie de arranjo de flores circulares, ou jardim. No imaginário da artista, a ideia da Terra é concebida através da imagem de flores coloridas circulares. A figura principal do quadro representa a própria Sônia (usando chapéu) que, com seus olhos fechados, encontra-se em movimento de ascensão aos céus, como uma sonâmbula, carregada por querubins. São asas impalpáveis que conduzem uma sonhadora mensageira. Em termos gerais, essa composição circular encerra a ideia do cosmos e de eternidade.
No quadro “Uma mulher e o touro”, Figura 04 (0,44 x 0,74 m, Mista sobre tela, c. 2000), coleção particular, há uma composição em camadas horizontais sobrepostas. Ocorre o predomínio de tons escuros e detalhes em bronze (metálico). O elemento principal figura sobre o nível mais elevado e representa a própria artista que, mais uma vez, apresenta-se de olhos cerrados – sonhando. Logo abaixo, há uma faixa que representa morangos emparelhados: signo de fartura e prazer. Na base da tela , observamos a imagem de uma cabeça de touro, em cor violeta, que se assenta sobre uma faixa de losangos coloridos. Essa justaposição de camadas, em que a composição ostenta uma ideia de assentamento, sugere maturidade e expõe que, em seu imaginário, a pintora coloca a figura da mulher no topo da estratificação figurativa: a mulher é concebida como o ser completo que protege todas as camadas da vida, sobrepondo-se aos elementos que representam a matéria. A figura da mulher está relacionada tanto ao universo material, através da força e da fertilidade, quanto ao espiritual – ideia de candura e amorosidade.
A Figura 05, “Eu quero uma casa no campo...” (0,35 x 0,27 m, pintura acrílica sobre tela, c. 2001), coleção particular, é inspirada nos versos da música de Elis Regina. Observamos uma composição em camadas horizontais em que o tom lilás translucido cobre boa parte do fundo superior em azul ultramar, que representa o céu. O elemento principal da tela representa uma casa cor de rosa assentada sobre uma colina. As massas de cores secundárias fundem-se suavemente, compondo uma paisagem abstrata. Torna-se interessante a escolha por um tom cor de rosa claro para representar a casa, dando ideia de amor e feminino. A ideia de um lar que sugere amor e repousa no alto de uma montanha expressa o imaginário poético da artista, em que o ideal de uma casa é sua ideia de segurança, como um ninho que descansa sobre o lugar mais elevado da terra. A opção por retratar uma casa em cor de rosa demonstra que, no imaginário de Sônia, uma casa representa o feminino, a doçura e o amor.
Concluímos que o estudo do imaginário poético da pintora Sônia Mara Mello, sob a fenomenologia de Gaston Bachelard, objetiva acrescentar mais uma visão crítica sobre sua obra, buscando um teor complementar a toda a análise que já proporcionou.






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